segunda-feira, 28 de novembro de 2011

EU E AS BARATAS

barata não morde. não pica. não rouba. não me força a comer pombas vivas. então por que eu tenho medo delas?

0_o

de todas. qualquer uma. até das mais minúsculas. flagradas na pia do meu banheiro. junto com restinho de pasta de dente, que sempre cai quando eu tou muito sonolenta.

uma família inteira veio morar no meu apê - pequeno, mas com aluguel em dia - junto com uma mesa que eu trouxe pra dentro dele. cenário duma peça de teatro minha, que não tinha onde morar. esconderam-se nas frestinhas da madeira. fugitivas. iysgbiydrgfvifsdgtáquipariu. acolhi a mesa, sem saber das migrantes, que acabou virando depósito de roupa usada. hehehe. algumas parentes de espírito mais cigano talvez tenham optado pelo carro do meu amigo - que serviu de carreto. ou carona - nos buraquinhos do estofado tocados por cigarros desatentos.

era quarta. passou quinta. chegou sexta. no sábado de manhã eu e um vestido longo e verde-água viajamos pro sul do país. vítimas de um convite irrecusável -  amadrinhar um casamento. num domingo fervente, em que o fantástico já tinha se despedido há horas, chegamos eu e o vestido - ausente de manchas etílicas. tomei cuidado :) -  e demos de cara, ou melhor, de pé com a família das baratas. as crianças brincavam no meu piso de taco ao redor da maldita mesa e, assustadas com a luz que se acendeu, correram pra algum lugar - talvez o colo de mamãe. o que faz um locatário quando se depara com invasores? eu tac tac tac tac imediatamente e sem dó em todos os filhotes que encontrei. (silêncio) porque eram filhotes. ou porque eu ainda não tinha percebido do que se tratava. do meu maior medo! e não tou falando sobre a condução da carreira da Jewel. mas de minhas arquinimigas. pisei nas pequenas que não me enfrentavam como fazem as maiores. e é isso, caro leitor, o que mais assusta. essa petulância das baratas. que, ou vêm pra cima, ou se escondem e esperam pacientes o momento certo de... subir em cima de você! KINOJO!!!

o tamanho do problema só chegou quando fui esvaziar a mesa - a maldita mesa - e... 0_0 a mãe descansava em cima do meu biquini. ou tomava sol, sei lah. hdcbgfhcdfgsbaratafiadapiiiiiiiiiiii
é guerra, barata? então você vai ver! fiz a única coisa sensata praquele momento: liguei chorando pro zelador.

e enquanto esperava o seu joão subir, fui pro facebook atualizar o meu status.

2 minutos.

ninguém deu a mínima pro meu problema, como qualquer pessoa em qualquer rede social. ou real.
o seu joão chegou e me explicou que tem mais medo de pernilongo, oxente. mostrou até as canelas pra provar. esmagou com o chinelo todas que encontrou. vasculhou possíveis esconderijos. e desceu a mesa pra garagem. eu já não chorava mais - foi apelativo, confesso - e só pensava em COMO EU VOU FAZER PRA DORMIR???

por 3 noites eu voltei à infância e deitei no claro. a ideia de uma barata entrando no meu ouvido, como vi uma vez num episódio de House, ou na minha boca... KINOJO!!!

elas foram sumindo. sumind. sumin. sum.

de vez em quando ainda encontro algumas desgarradas. pequeninas, ainda bem. aí, em vez de chamar o seu joao, descarrego toda a minha raiva, coragem e inseticida em cima delas.

> I  

até murcharem. murcharem. murcharem.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

POST-IT


na gaveta, post-its, canetas, sujeira e uma foto de quando éramos.

na agenda, papéis de balas chupadas, lágrimas.

na carteira, uma folha de arruda, uma nota rasgada, comprovantes de compras e de solidão.

na goela, mágoa, pigarro e páginas indeletáveis.

no gatilho, sua cara.

na janela, a espera, o vento.

nos sonhos, todos os segredos destrancados.

nas solas, fios de cabelos. só.

no coração, pó.

 
 


sábado, 19 de novembro de 2011

PERSONAGENS DO PERU - O PERUANO BANCÁRIO



Me deixa contar deste peruano, que conheci a caminho de Aguas Calientes, que é a cidade mais próxima de Machu Picchu e que todo mundo costuma passar a noite antes do passeio. Eu subi no trem, cruzando os dedos para desta vez a sorte me atirar um rapaz bonito na poltrona ao lado, e quando achei a número doze do vagão B, vi que meu vizinho estava atrasado. É jogador de futebol, criança ou vai ficar aí vazia. É sempre o que acontece comigo. Me lancei do ladinho da janela - gosto de ver a paisagem correndo - e abri o meu livro. Tava no comecinho, era do Alberto Manguel - eu gosto desses argentinos quando escrevem. Aí chegou o fantasma da poltrona vazia, que quem sabe mudaria o rumo dos meus quatro dias no Peru. Eu sou azarada mesmo. Fisicamente, era a pessoa mais desinteressante que eu conheci na vida. Sem drama, era mesmo. Ele tinha a versão espanhola do seu nome, então Juán, e arregalou os olhos do mesmo jeito que você quando me viu pela primeira vez. Ele era um cara feio. Muito feio - apesar de ter os seus olhos quando arregalados. E diferente da reciprocidade que te dei, eu tive nojo dele. Não sei se porque suava ou porque parecia babar por mim. É, ele ficava mostrando aqueles dentes como se tivesse acertado a loteria. De repente eu era, sem dúvida, a mulher mais bonita do mundo. Exatamente como você me fez sentir naquela noite e em todas as outras, sempre que a gente se encontrava cambaleando no bar, culpa da labirintite que beber até o começo da manhã dá. O peruano era grande, dum jeito nada atraente, e preenchia a sua poltrona e mais um pouco da minha. Eu não gosto de viajar ou ir ao cinema sem poder encostar os cotovelos nos braços das cadeiras. É desconfortável. Ele era espaçoso ou tava inventando um jeito de relar em mim. No Peru as coisas devem ser assim. Mas eu não deixei ele tocar um pelo do meu braço. Me joguei bem pertinho da janela pra ele não me encher o saco. Mas o peruano deixou claro que queria papo e, como havia momentos em que a minha retina parecia descolar e eu não conseguia mais ler o livro do Manguel, resolvi matar o tempo - até meus olhos se recuperarem - respondendo a algumas perguntas dele, exibindo um sotaque portenho que tentei imitar dos pais da Gabriela. Ele elogiou o meu espanhol. Isso deu uma acarinhada no meu ego e eu devo ter até sorrido pra ele, não tão aberto como fiz pra você quando se apresentou pra mim. Você ainda lembra? Porque eu sim. Caramba, como o seu olho brilhava. Faiscava. Eu era a mulher mais bonita do mundo pra você também.  E eu me apaixonei ali mesmo. Na porta do banheiro. Deprimente só pra quem ouve ou lê essa história. Voltando ao peruano suado ou babão, contei pra ele o que eu fazia no Brasil e descobri que ele era bancário e eu pensei Nossa, e o cara ainda é bancário. Eu me enchi da conversa, porque não entendia um terço do que ele falava, enrolando a língua ou salivando em cima de mim. Tava cansada de perguntar Quê? e não entender quando ele repetia. Então voltei pro livro, porque tava mesmo interessada na história - era policial e tinha vários narradores e surpresas - deixei o peruano bancário comendo sozinho o amendoim que serviam no trem. Imaginei que podia ter um pedaço bem no meio do dente quando ele sorrisse daquele jeito insuportável pra mim de novo. Quando chegamos a Aguas Calientes e eu dei graças a Deus que ia me livrar do fardo de mulher mais bonita do mundo, me despedi como se tivesse adorado conhecê-lo. Às vezes eu consigo ser filha da puta com esse tipo de homem. Eu não dei a entender que queria algo com ele, sabe? Só quis consertar toda as minhas esnobadas durante o percurso e sair de boazinha. Sei que isso deve confundir pra caramba a cabeça de um cara que te olha com faíscas nos olhos. Não você, claro, ele. Deixei a estação com a consciência tranquila, sem pensar no que o peruano sentiria. Afinal, eu nunca mais veria o cara, certo?

Assim que me instalei no hotel, resolvi sentar pra comer alguma coisa peruana, tipo ceviche ou porquinho-da-índia, e tomar chicha ou pisco, num restaurante decorado com trabalhos artesanais e aqueles tecidos tão coloridos, de que até comprei um tênis. Eu estou no fim duma sopa de quinua e quem desce as escadas do restaurante que abrigava uma pousada no andar de cima? Quem me dispara aquela merda de olhar que me obriga a lembrar de você? Lógico que o peruano se convidou pra sentar comigo. Acho que porque fui simpática, não tava muito a fim de parecer louca e fingir que não o tinha visto depois da minha despedida super fofa na estação. Enfim. Por dentro eu tava irritada. Minha noite naquela cidade estava destinada ao fracasso. Eu sugeri que ele pedisse a mesma sopa de quinua e ele obedeceu. Acho que quis me agradar, porque não me parece o tipo de cara que janta sopa. Depois de comer, eu pensei em dar uma volta por Aguas Calientes, que é uma cidade bem charmosa e bem pequena também, e por causa desse tamanho minúsculo eu não pude fugir dele, inventando que ia dormir. Ia topar o peruano na praça e ele saberia que eu tinha mentido. Aí Adeus boa moça que se despede com meiguice na estação de trem e Bem-vinda vaca que ignora homens feios e chatos e suados e bancários e que te olham como alguém que vai te magoar um dia. Dei uma volta xoxa com ele pela rua principal e depois sim falei que queria ir dormir. Eu queria mesmo. Esse peruano me dava sono. Não falava nada e quando abria a boca era no meio daquele sorriso bobo, que só você pode ter. É logico que ele me levou até a porta do hotel. Saco. Me despedi sem ser tão gentil desta vez. Vai que.

No dia seguinte eu finalmente conheceria Machu Picchu e acordei cedo pra pegar o ônibus. Na entrada do parque, descobri que tinha esquecido a bateria da máquina fotográfica no quarto do hotel e acabei pedindo pruma freira me fotografar durante o passeio. Percebi que um grupo de caras tava rindo de mim e eu me senti meio idiota por parecer que viajava com minha tia-avó freira. Isso não foi nada porque no começo da caminhada, num daqueles imensos terraços de Machu Picchu, sentadinho com sua excursão, tava lá o peruano. E aí não sei o que me deu, senti vontade de contar pra ele que tinha esquecido a bateria da máquina no quarto e ele se propôs a tirar uma foto minha e me mandar por email. Esse foi um pretexto pra ele pegar o meu email. Você tá entendendo? Gente como ele sempre arranja um pretexto pra pegar o seu contato. No fundo ele sabia que não ia passar disso, nem se eu enchesse a cara de pisco no Peru, longe de todo mundo que eu conhecia. Eu anotei o email num papel pra ele. Nunca mais vou ver esse carrapato mesmo. E se o nome, o sorriso e o olhar dele têm alguma relação com você, esse email nunca vai chegar e pronto, obrigada, não vou ter mais notícias desse tal Juán. Tratei de me juntar ao meu grupo e deixei o Juán lá com o dele. Durante o passeio não nos vimos. Esse azar me foi dado no fim, ele quis porque quis fazer uma foto minha numa escadaria e na hora do clique a bateria dele também acabou. Eu tava lá com uma cara de besta sorrindo pra máquina dum cara chato. Ele pediu pra eu esperar, que ia desligar e ligar de novo e eu fui muito bacana em concordar com a ideia. Aí o grupo de caras que já tinha rido de mim com a freira passou e me viu posando pra máquina do peruano. Eu me irritei e desci a escadaria, falei Nos es necesario, Juán, gracias. E saí aindando na frente dele. Me deu sede todo o passeio e o estresse da foto, então saí do parque pra comprar água e ele veio comigo. Sem eu pedir. Procurei me afastar enquanto me hidratava, olhando pra Wayna Picchu. Como aquele lugar era lindo. E tava cheio de gente que eu poderia conhecer e tudo mais. Me aproximei dele - o pescoço pingava de tão suado - e perguntei se ele tava indo embora, pois eu ia entrar em Machu Picchu de novo pra ler o meu livro em um dos terraços. A cara que ele fez não foi boa, mas pelo menos foi de alguém que entendeu que eu não queria a companhia de ninguém pra ler o livro do Manguel.

Mais tarde, no almoço, sei que ele me viu sentada na varanda de um restaurante sozinha, mas dessa vez resolveu me ignorar. Se você acha que eu só gostei de você porque fui ignorada, está errado. Agradeci ao deus sol por deixar de ser a mulher mais bonita do mundo naquele instante no Peru e continuei o almoço. Foi a última vez que olhei para aquele cara todo desinteressante.

Uma semana depois, recebi em minha caixa de entrada a foto com a montanha Wayna Picchu ao fundo e o quanto o autor do email tinha gostado de me conhecer. Achei meio humilhante. Mas deve ser uma fase ou não gostei mesmo dele nem daquele olhar iluminado. E eu fiz o que você faria comigo: nunca respondi. Eu não vou ver mais esse cara, não é? Tenho até receio de pensar isso em público.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

DENTRO DA PISCINA



Talvez fosse tímida ou careta ou as aulas de religião haviam cumprido seu papel. Pecados pagos com rezas e a vida continua, irmã. Talvez simplesmente não pensasse em garotos, nem que pudessem chegar tão próximo, como as mãos de Vítor na calcinha do meu biquini. A cosquinha que senti era de quase fazer rir. Quase. Olhar para a cara dele nem pensar. Mais justo sair da piscina infantil e levar o fato ao julgamento da coleguinha, uma ruivinha vesga. Poderíamos decidir juntas o que tinha acabado de acontecer.

- Ele também passou a mão em mim!

Então isso era Passar a mão? Não pode, reza três Aves-Marias, lembrou o fantasma da mãe. Menina que deixa passar a mão é galinha. Galinha eu sabia o que era e não queria ser uma. Acho.

- E também passou no meu cu.

Não pode falar Cu também, um Pai-Nosso. Concordei com o fantasma. Sempre achei essa ruivinha vulgar. Ou a minha mãe disse que ela era. Não me lembro.

- É gostoso, né?

Você, leitor, se sente obrigado a concordar com um Né? Eu sim. Ou porque tenho pena de chatear as pessoas ou porque tinha gostado da sensação que os dedos de um garoto mais velho tinham despertado na minha, você sabe. Voltamos as duas para a piscina então.

Éramos as únicas crianças aproveitando o sol da tarde e as férias no condomínio. Vítor à espreita. Esperando nossa fingida desatenção. Aos nove anos, eu nunca a tinha espiado nem por um espelhinho durante o banho. Não entendia de onde Vítor tirou a estranha ideia de roçá-la. Criatividade. Eu podia mais. Muito mais do que usá-la para fazer xixi.

Eu mal tinha deixado a água molhar a coxa, Vítor decretou sua preferência e avançou na ruiva como um enxame. Ela parecia ter frequentado alguma aula que cabulei. Não me estranha, já resolvia equações e aprendeu a Salve-Rainha antes de todos. Ela não restringia as áreas do seu corpo para os dedos de garotos de treze anos. As garras do Vítor, acho que cortadas por linhas encharcadas de cerol - assim desconfio pela aspereza que pude sentir na minha vez -  deslizavam sem economia pelo corpo da ruivinha vesga. E ela reagia como se treinasse a vida toda com bichos de pelúcia, dos grandões, trancada em seu quarto de noitinha, longe dos ouvidos dos pais. Eu assistia a tudo em parceria de um sentimento próximo àquele quando a sua irmã ganha uma Barbie e você meias brancas de Natal. Algumas cabeças espionavam, emolduradas pelas janelas dos apartamentos mais baixos. Vítor não me notava mais. Eu ia perdendo as esperança de brincar de quase riso de novo. Como aquela zarolha poderia vencer o meu rostinho de boneca? Se eu morresse afogada, talvez nem as cabeças curiosas notassem. Eu não tinha mais nada.

Na tentativa de provocar-me o quase riso, meu mais recente amigo, tentei eu articular as  falanges, que de tão delicadas e medrosas recusavam-se a me explorar dentro da água. Eu precisava de Vítor, mas ele e a vesga continuavam num insuportável nado sincronizado e tátil. Então tirei a calcinha do biquini, pensando que ele poderia estar enjoado da lycra como obstáculo. Acomodei-a na borda da piscina e esperei. Esperei. O fantasma da minha mãe gritava, enquanto Vítor se aproximava. Eu pensava que se eu fosse galinha mesmo, poderia resolver com três aves-marias e um pai-nosso no próximo domingo. Mas a brincadeira estava ganha. E eu quase riria a tarde toda.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

VONTADE DE RESPIRAR


Clara não tem olhado pra dentro. Faz mais de um ano. Desde que. Desde que abandonou a sua banda. Parou de ouvir música, como se numa dieta. Foi naquele dia. Ela decidiu nunca mais ligar o rádio. E o ignora até hoje. Eu sou testemunha. Passávamos as tardes de sábado coladas ao micro system que a tia deixou, quando foi morar com aquele rapaz, dezessete anos mais novo. Que encarava os meus peitos. Talvez a minha bunda. Não tive coragem de descobrir. Por causa dele, ainda evito as blusas decotadas, nunca sei quando vou encontrar garotos, donos do mesmo olhar dissonante, soltos pelas ruas. O micro system tem cômodos para duas fitas cassete, cinco CDs e um vinil, e embora minha mãe tivesse se livrado de todos os discos que colecionamos até o nascimento do CD, ainda podíamos ouvir os de Roberto Carlos, Vinícius de Moraes, Elis Regina e Aretha Franklin, que consegui salvar, graças à gaveta de calcinhas. Foi como abrigar fugitivos. Clara sempre cantava por cima da Aretha e eu me perguntava como ela ainda conseguia ser tão branca.

Nossos sábados eram comemorados no tapete felpudo e verde da sala de estar. Deitávamos em nossas almofadas gordas, as mesmas que éramos obrigadas a usar toda vez que a tia do interior vinha de visita e nos tomava os travesseiros para cumprir suas noites bem dormidas.

A Clara que dividia músicas comigo não é essa que toma o café da manhã na cadeira ao lado da minha, antes de mim, para que eu não a meta em conversas. Ou a que se tranca no quarto durante as noites e talvez chore quando todo mundo dorme ou seja vítima de sonhos desafinados. Se posso voltar ao minuto em que Clara deixou de cantar, gostaria de dizer-lhe que foi rebeldia. Os dias de hoje só conhecem a mudez de minha irmã. Não há backup do som açucarado que só a voz dela fazia.

Eu acho que sinto os olhos da Clara alagando toda vez que a mãe estaciona num canal de TV exibindo um show. Eu posso ver a tristeza da minha irmã se escondendo debaixo de sua indiferença. E escapando pro quarto, onde talvez desague mais uma vez ou agrave a frustração com algumas notas engasgadas desde aquele dia. A Clara tem certeza que nunca soube. Meu Deus, ela nunca se ouviu? Ela se esqueceu? A banda tinha um líder. Toda banda tem. Todo líder tenta forçar suas perspectivas na goela alheia. Todo líder no fundo é inseguro e usa o dom da manipulação pra embelezar suas próprias ideias. A sede do líder só é estancada quando consegue se enxergar em seus discípulos. Todo líder entulha na sua cabeça que você não passa de um equívoco que o mundo acolheu sem querer. Todo líder é narcisista pra caralho. E assim Rodrigo calou Clara. Temo que pra sempre. Por que Clara não reage? Por que ela simplesmente não grita? Prefere sobrar silenciosa pela casa. Pelas ruas do bairro. Em festas de família, é a mesma personagem muda. E se, eufóricos e bêbados, revivem os velhos tempos, insistem numa Clara de antigamente. Insistem na voz cor de rosa cintilante que ela borrifava em microfones. Que combinava com violão e bossa-nova, mas também com guitarra suja e letra suja. Clara não se reconhece nas histórias que eles contam entre cuspidas alcoólicas e risadas sem sentido. Ela ouve sua vida como se de uma outra pessoa. Rodrigo foi competente. Rodrigo construiu tão bem a história de cordas vocais irrelevantes. Rodrigo, seu mentor. Acreditou como em coelho de Páscoa. Não acordou desse pesadelo mentiroso. A ingenuidade da Clara deixou Rodrigo se espalhar por seu corpo até estrangular a coisa mais bonita que ela sabia fazer.

Hoje arrisquei ouvir Aretha. E hoje é sábado. E Clara nos deu as costas, pegando a chave do carro, presa à mesma bolinha de futebol suja, presente do ex-namorado, que ela nunca gostou tanto assim - e talvez, por isso, não se importe em manter. E enquanto Aretha arranha as paredes ocupando a sala, a casa, Clara pausa melancolias. E leva o coração para pegar um pouco de ar pelo bairro em que crescemos. O vento geladinho entrando pouco pela janela, mas o suficiente para trazer cheiro de ontem. Clara inalando passado. Daqueles tempos em que você mora pertinho da casa do namorado e, em fins de anos escolares, rabiscam a sua camiseta com nomes e promessas que agora você custa a decifrar. A vontade de ser. Canta, Clara! Feliz 98!

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