É pouco!
Espeto sua cabeça de espuma
Arranco a mordidas braços e pernas
Você não arde
Ela não transborda
nem sangra
O flagra se repete
Você, a mesma
Cravo em seu peito um espeto de carne
Cai o meu boneco de pano
Escorre a sua última indiferença
Arranco a mordidas braços e pernas
Você não arde
Ela não transborda
nem sangra
O flagra se repete
Você, a mesma
Cravo em seu peito um espeto de carne
Cai o meu boneco de pano
Escorre a sua última indiferença
Quem é essa mulher e por que ela não pára de olhar para a porta? Eu não vou aparecer para o seu contentamento. Odeio agradar. O estalar dos seus dedos me irrita a ponto de eu manchar o seu vestido branco com o meu vinho tinto. Recuso-me a pagar a lavanderia! Posso, no entanto, lamber os respingos em seu rosto macio com a minha língua áspera. Não quero um beijo. Quero lhe dar um espelho e a foto dos meus três filhos. Não quero um amor. Se ela concordar, cumpre oito horas diárias. Pago o seu bilhete Único. E tem a minha camiseta listrada de vermelho e azul-marinho. Ela sabe lavar? Parece-me do tipo que não reclama das mãos secas de sabão. Pensando bem, é bonita, mas olha para a porta insuportavelmente. Sua devoção desperta a minha sede. Que pernas, puta que pariu! Ela quer? Eu quero. Hoje. Por enquanto. O dia seguinte, resolvo a minha maneira: a ausência canalha no café da manhã, enquanto ela olha para a porta e me espera voltar.
Vocês já viram um limão com vontade própria? Eu não, mas soube de um. Aconteceu na semana passada com a minha vizinha de seis anos. Abri a porta e dei de cara com a Yasmim chorando e foi difícil me controlar para não rir daquela coisinha de bochechas gordas, borrando toda a sua maquiagem de palhaço. Era dia do circo e as professoras fizeram essa surpresa para a criançada. “Que aconteceu, Yasmim?”. Entre soluços e fungadas ela me contou que um limão não sabia se queria servir de suco para ela. No Pré-III eu conversava com a pia do banheiro e via sombras andando pelas paredes de casa, então achei que fosse coisa da idade e me ofereci para acertar as contas com o limão. Mas não éramos tão parecidas assim, já que ela agradeceu, mas recusou a minha ajuda. Disse que era um assunto que deveria resolver sozinha com o limão. Ver uma criança auto-suficiente me dá raiva. Não dela, mas de mim, que sempre fui uma tonta incapaz de solucionar os problemas da infância sozinha! Uma bronca da professora se traduzia
Logo soube que Yasmim só havia tocado a minha campainha para pedir uma música. “E desde quando você conhece Mombojó?” E essa malandra ainda tem um gosto musical bacana! Só faltava fumar e discutir o cinema de Antonioni tomando cappuccino! O limão havia contado que gostava das músicas do Mombojó. Emprestei o primeiro álbum.
Naquela noite Yasmim ligaria o radinho do seu quarto para ouvir a faixa oito, Adelaide. Apagaria a luz e esperaria pelo sono contando limõezinhos espremidos em uma jarra de suco transparente. Eu sentaria para tomar uma cerveja com os amigos, porque de caipirinha já enjoei (elas são todas iguais!) e pensaria em uma maneira de fazer Yasmim colocar esse limão contra a parede. Se ele não quisesse virar suco, que tivesse a coragem de dizer, assim ela poderia abrir a geladeira a pegar uma maçã.
Sonhava que mastigava um golden retriever. Engasgou com os pêlos. Tossiu. Sentiu que as unhas do cachorro estavam grandes demais, quando a língua ardeu e o gosto salgadinho de sangue misturou-se à saliva. Engoliu.
Ao acordar, um alívio. Fazia de chupeta a pata da gatinha siamesa. Voltou a adormecer com o sabor de chão sujo na boca e uma picada de pulga na gengiva.
Foi a única que enrubesceu na apresentação. Esperou tensa a indiazinha perua dizer por que queria o estágio. Enquanto isso sua língua secou e as pernas começaram a tremer de um jeito engraçado que a forçava a mexê-las o tempo todo para disfarçar o nervosismo. Lembrou do teste de direção para tirar a carta de motorista. Deixou o carro morrer por não conseguir manter o pé esquerdo firme na embreagem. O descontrole era tanto que seu joelho batia na direção. Na sua vez de falar, a timidez não se escondeu. Alguns apostavam que ela havia passado blush no rosto inteiro. Se ela soubesse, retrucaria “Jamais! Eu não uso blush vermelho-goiaba, mas rosado médio, porque dá um visual queimado de praia”. Começou dizendo o nome. O som do “s” não saiu como gostaria. Sua voz também. Não se concentrou para deixá-la mais grave e o que a sala inteira pôde ouvir foi uma menininha de vinte anos insegura, despreparada e burra. Alguém deve ter pensado em mandá-la de volta às compras no shopping. Outro deve ter olhado constrangido para cima com o intuito de se desligar do que ouvia, tamanha a vergonha que sentiu por ela. Enquanto falava suas bobagens, desejava ter escrito tudo na lousa branca para quem quisesse ler e saber quem ela era realmente. Alguém além daquele nome dito de maneira fraca e com problemas na dicção. Alguém além da máscara de timidez. Alguém capaz de conversar com mais gente além dela refletida no espelho do quarto. Finalizou confessando nunca ter lido Borges e só voltou à estabilidade cinco pessoas apresentadas depois.