quinta-feira, 21 de junho de 2007

DEIXE-ME OLHAR PARA ESTA PAREDE ANTES

     Deixe-me olhar para esta parede antes que você entregue a chave. O que você vai fazer com a caixa de sapatos onde guardávamos as fotos? Se for queimá-la, reconsidere. Posso ficar com todos os álbuns. Não entendo porque a cama vai para a sua irmã. Eu não quero a geladeira, mas fico com o microondas que decorei com adesivos modernos. Vou tirar só as letrinhas do seu nome. As que estavam em azul, porque você gosta de azul. Posso levar o escorredor de macarrão? É seu, mas você odeia massa e eu não vivo sem espaguete. Troco pelo cinzeiro roubado no Amarelinho. Vamos dar a tinta branca que sobrou da reforma para o porteiro? Também quero me desfazer do nosso edredon. Acho melhor você também não levar. Olhe esta sala, quase comprei um tapete na semana passada. Quase. Ainda bem que não. Era listrado de azul e branco. Porque você gosta de azul. O que vai ser do seu escritório? Lá não tem espaço. Vamos ter de dividir as plantas. Você comprou, mas eu cuidei. Fique com as grandes. Eu me responsabilizo pelos temperos. É melhor limpar o chão. Você acredita que ainda tem cerveja da festa da semana passada? Ninguém vai esquecer das nossas festas. Nem os vizinhos. Falando nisso, preciso devolver a panela da senhorinha do quarenta e um. Tão simpática, mas não gostava de você. Agora é hora de ir. Quero, pela última vez, ver da varanda tudo o que via pelas manhãs. O gato preto na janela balançando o rabinho, a mulher velha varrendo o chão da rua de chinelo e meia grossa, os passarinhos conversando nos galhos das árvores, meu carro estacionado, o seu. Para sempre vou lembrar do cheiro do café com leite e do pastel que você trazia da feira aos domingos, mesmo sabendo que eu não comia nada oleoso. Deixe-me olhar para esta parede antes que você entregue a chave. Eu gosto da cor dela. Você também. Leve a chave e fique com o meu chaveiro, por favor, que eu fico com o seu.

quinta-feira, 14 de junho de 2007

MÚSICA DE BORDEL

Depois de tantos anos, ainda olho para o espelho e, ajeitando meus poucos fios de cabelos brancos, cantarolo a música que você me mostrou naquela noite. Confesso que das minhas farras nos bordéis de Toledo das Campanhas apenas aquela tem capítulo exclusivo na minha vida. As outras resolvi em uma curta crônica, publicada há doze anos no jornal do meu bairro. Quando você me levou ao seu quarto, esperava que, ao trancar a porta, arrancasse a sua roupa. De maneira feroz, porém feminina. Não é o que vocês todas fazem? A inexperiência e o nervosismo fizeram você desencapar o violão. Você tinha uma voz limpa e suave. As últimas sílabas de cada palavra cantada produziam um som nasal gracioso. É esse som que me faz parar de mexer no cabelo para sorrir curto e distraído. Além da melodia, que não me saiu da cabeça. Uma letra que não consigo dizer. Contava a nossa breve história. Que história? Não voltei a lhe procurar. Você foi de tantos antes e depois de mim. A inexperiência e o nervosismo me fizeram nunca mais aparecer. Você também não abandonou a sua vida para bater na minha porta numa madrugada qualquer, chorando, de maquiagem borrada. Poderíamos ter sido. Focando os meus pés-de-galinha, pensei em lhe procurar. Publicar uma loucura nos jornais nos quais tenho contatos, poucos. Sou velho, hoje, e não tenho mais frescuras. Se quero usar chapéu de policial, uso. Uso e fico bem apanhado. Você cantaria pra mim?

quarta-feira, 13 de junho de 2007

PAIXÃO CAFÉ

     João, 32 anos, nordestino, maduro e carente. Desses que não são capazes de controlar a velocidade das batidas de próprio coração. Não conseguia dormir. Estava debaixo do edredon verde há uma hora com aquela taquicardia. De olhos fechados, procurando a melhor posição para se entregar ao sono. Resolveu apontar a barriga para o teto e levou os braços cruzados para a parte de trás da cabeça. Respirou um “dane-se” e levantou-se. Ao acender a luz, a claridade não o incomodou, pois a ansiedade pedia maior atenção. Foi direto à gaveta do meio da penteadeira da mãe, falecida. Pegou um envelope lilás, aberto, e tirou dele um papel arrancado de um caderno universitário. Palavras escritas a caneta bic azul. Se alguém pudesse vê-lo naquele momento o acharia bobo. Não é assim que definimos um homem que se rende a uma fantasia romântica? Alimentado de uma felicidadezinha efêmera, dobrou o papel pela terceira vez na mesma noite e o enfiou dentro do envelope, devolvendo-o à gaveta. Apagou a luz e no meio daquele silêncio, pôde ouvir o coração ainda mais acelerado. Deitou-se com um sorriso carimbado e tentou, outra vez, dormir. Em vão.  
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...